A cidade estava vazia, poucas luzes piscavam na avenida morna, de uma madrugada, morna, e eu... a passos lentos buscava, não sei o quê, talvez alimentar alguma fantazia, quem sabe esquecer algum velho amor, mas se velho era, se o deixei envelhecer, assim também haverão as lembranças de envelhecer, mas... desci uma ladeira longa, leve de descer, sabe aquelas ruazinhas em declive, quando parece que tudo ajuda-nos, até o ditado popular, diz que pra baixo todos os Santos ajudam, assim, assim mesmo era aquela ruazinha, alguns bebados tropegos andavam meio em caracol, desciam embalados pela leve aragem e confundiam-se com pobres meretrizes que tresloucadas buscavam por amores fáceis, um cachorro magro descia a ladeira a balançar acola, esperando que dos homens bebados sobrasse algo para mais uma pobre alimentação, a lua brilhante e faceira dava o tom da luz, ao fundo um som confunde minha mente, será um pandeiro, será um violão e algum bandolim? Não sei, sei apenas que vem lá de baixo, sai de uma porta entreaberta, onde um guardião esquálido, pálido, branquíssimo, já quase sem forças tenta manter a ordem na entrada, assim é a madrugada da minha cidade, cidade encravada no submundo doutra cidade, mundo envolto no mundo doutro mundo, são homens bebados, drogados e outros nem tanto mas encontrar um sóbrio, altivo, ainda esperto é realmente um lance do acaso, são mulheres pintadas, meias acima dos joelhos, com altíssimos saltos de botas de um couro barato, entradas não sei como em calças justíssimas ou enfiadas numa mini saia, quase imperceptível, são filhas de modestas famílias vindas quase todas de longinquos interiores em busca de sonhos, de planos, ou são mulheres mal amadas que muito amaram, por algum motivo estão ali buscando um meio de sobreviver ou quem sabe destes amores esquecer, assim é minha madrugada, assim é minha cidade, um local onde mulheres e homens buscam com desespero um meio na idéia deles digno de viver, marujos sobem a rampa em grupos, algumas mulheres acompanham seus namorados prediletos, irão com eles até o porto, talvez por alguma brecha entrarão nos seus navios e ali viverão sonhos e promessas, receberão alguma coisa por isso e terá assim passado mais um dia....
Assim é minha madrugada, ainda é muito cedo pro galo cantar, encosto-me a um muro e de lá fico a meditar minha situação mediocre de vida, um guarda apita ao longe, é um silvo estridente, rompe a madrugada, um casal de namorados vai descendo a ladeira aos gbeijos e amassos, isto dá-me saudade de algum tempo perdido no passado, outro casal para ao meu lado, inquietos ficam aos beijos e bulinação ao meu lado, isto inquieta-me, me faz lembrar que apesar de esquálido, quase sem recheio ainda sou um homem, apesar de abandonado, perdido, insone, ainda sou um homem, ainda bate um coração que deseja amar, saio dali, percebo o deslocamento de algumas meretrizes, em busca de algum perdido, de drogas, de bebida, do nada, assim é meu mindo, assim é minha madrugada, dou alguns passos mais e sou envolvido pelo abraço de uma mulher, que ao mesmo tempo beija-me e acaricia-me de modo atrevido, de modo ousado, deixo-me envolver, deixo-me absorver por tudo aquilo, sou arrastado para o interior de um bar, mal cheiroso, apertado, com pessoas que pode-se dizer, -fedem, exalam um mal odor, acomodo-me recostado a um balcão, nuvens de fumaça enovelam o ar, ali um mundo de fumantes saciam seus desejos de sexo, fumo, jogo e bebidas, ali parece ter o cheiro do pecado, um odor de enxofre, ali mora o mal em toda a sua consubstância, assim é minha madrugada, morna, quase desinteressante, mas é a minha madrugada, uma outra mulher vai aos poucos encostando seu traseiro gordo no meu esquálido corpo, prefiro a magrinha que pra lá arrastou-me, a gorda dá uma suave cheirada no meu pescoço, já não tenho sentimentos, nem energia para provar um arrepio, a outra vai aos poucos insistindo em caricias mais envolventes, bebemos e fumamos, alguém chega e oferece um fumo diferente, ainda tenho forças para dizer que não fumo e não cheiro estas coisas, prefiro morrer careta, assim é minha madrugada....
Aos poucos vai andando a madrugada de encontro ao nascer do sol, saio dali meio tonto, meio zonzo, sei lá pareço perdido no tempo e no espaço, começo a ingreme subida da ladeira, agora poucos bebados são vistos, alguns músicos da noite voltam pra casa com seus violões em baixo do braço, marujos ao meu lado fazem festa com um bando de mariposas embriagadas, aladeira está em festa a altas horas da madrugada, todos teem motivos pra cantar, cantar seus amores, cantar suas angústias, cantar suas conquistas fáceis, mas... cantar, naquela rua não há lugar pra tristezas, um bando de mulheres mal amadas, de homesm com sentimentos mal resolvidos, de marujos com amores muito distantes, homens e mulheres que chegam a feliz conclusão que chorar não adianta, não resolve, assim é minha madrugada....
Volto a escutar uma música agora mais próxima, mudo de calçada enquanto, um outro cachorro magro e mais alguns outros sei lá quantos, atravessam minha frente, penso no quase nada que sou, quero sair dali mas não encontro forças, apenas vontade de ficar, alguem grira, -polaaaco, olho pra trás... é ela, a mulher que justifica toda a minha tentativa de manter-me pelo menos de pé, respiro quase feliz, quase sorrio, uso meu ar de meio alegre, ela aproxima-se, envolve-me com seus braços longos, aperta-me contra seu corpo magérrimo, é mais uma filha da rua, gerada pela pobresa dos mal amados, fruto das meninas mal instruídas que caem nas mãos dos contrabandistas de mulheres, é meiga, suave, uma menina legal, penso eu assim, apenas maltratada pela vida, escolhida por uma pessoa para ter uma má vida, penso eu.
Na fria madrugada, recostado à uma parede mal rebocada, numa rua mal iluminada, ganho o preço por estar com ela, por viver com ela, carinho, um pouco de atenção, um pouco de valorização, ela me faz de vez em quando um pouco mais homem, me faz pensar que ainda sou gente, pois a tenho comigo, foi o que sobrou das minhas noites de folia, dos meus momentos de viagens aos trópicos das alucinações, foi bom estar lá, mas terível a volta e nesta volta busco a cada dia, reencontrar-me com o homem que deixei, reencontrar-me com os filhos que gerei, com a mulher que amei, com o serviço que deixei, mas na angústia das minhas madrugadas, no delírio das minhas noites mal dormidas, no meio do meu desespero fissurado, minha boca seca, meus lábios ficam quebradiços, minhas pernas bambas, apenas sabem procurar pelo mal caminho desta madrugada, estou sóbrio, equilibrado, mas a cabeça, a cabeça gira, está vazia, não consegue concatenar, organizar os pensamentos, sou muito mais carcaça do que homem, muito mais esqueleto, do que gente, sou aquilo que sobrou das minhas paixões alucinantes, dos meus voos macabros, das minhas viagens até hoje parece que sem volta, agora ela aperta-me com a vontade de quem quer algo mais, vamos aos poucos buscando por nosso refugio, agora subindo a ladeira que por momento descia, ela parece cansada, dançou, fez amor, fumou, bebeu, cheirou fez tudo aquilo que podia para mais um pouco, por mais uma noite destruir sua vida, hoje ela é filha do nada, é irmã do desespero, é casada com uma coisa que insiste em deixar-se chamar de homem, aos poucos não longe dali, quase no mesmo quarteirão está nossa pequena acomodação, insistimos em manter um jardim, algumas flores balançam ao vento gélido da madrugada, entramos, preparamos um café e...
Resta-nos apenas a cama, a cama para uma mulher cansada e para um homem sem desejos, sem propósitos, somos dois filhos do mal uso da vida...
Ao acordar, ela engolirá alguma comida barata, arrumará o cabelo e voltará ao cruel destino da sua vida... a noite.
Eu, tentarei dormir, tentarei viver, mas na certa voltarei à madrugada, que pra mim começa a cada dia mais cedo, em algum lugar da rua suja e mal frequentada pareço ouvir novamente, -Polaaaco... e lá vou eu, apenas este é o grito que ouço, apenas esta é mulher que bravamente atura meu desencanto, enquanto houver vida, tentarei viver, ela não perece ter qualquer atrativo daquelas mulheres que trouxeram-me para este lugar, mas de algum modo este pedaço de gente, esta sobra de mulher, dá algum motivo à minha vida e é por ela que vivo minhas madrugadas, também por ela ainda tenho a esperança de voltar a acordar, a trabalhar, a viver, a ser pelo menos um pouco daquilo que fui, não ser apenas o Polaco, mas ser um homem que ressucita, que ressurge, das profundesas do nada.
Um retrato do nada que sobra a um homem e uma mulher, após os delírios das drogas, pra pensar, terminei neste sábado, de Brasil e Uruguai.
Por: Wcastanheira
Nenhum comentário:
Postar um comentário