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quinta-feira, 9 de abril de 2009

A VIDA DE AMBRÓSIO

A VIDA DO AMBRÓZIO
Por: WBCASTANHEIRA.


Nasce um gaúcho, assim meio perdido na imensidão dos pampas, quase ao relento tendo como albergue uma tapera velha mal sustentada em quatro estacas, furos de bala por toda parte, telhado de zinco mais parecendo uma peneira destas de joiá feijão, mas era o que tinha sua pobre mãe, como lugar para dar a cria,um salão de chão batido onde muitos fandangos e muitas escaramuças haviam acontecido, o indiozito, que viera ao mundo e de tão bagual, pra chorar só apanhando de relho mal sabia que teria esta por sua derradeira surra, pois jamais alguém poderia bater naquele couro beijado e acariciado por mamãe (onde mamãe beija, macho não toca sem levar balaço, rebencaço ou algo que venha a equivaler), mas foi passando o tempo e logo em seguida pela lida da vida o guapo teve de ser desmamado ainda pequenino, precisou enfrentar geadas, correr atrás do gado, lidar com terneiros, destemer assombração (sim, isto é coisa de boióla da cidade, gaúcho que se preza corre estes mal vistos a facão), devagarito, conquistou a simpatia dos senhores do campo e ainda moleque ganhou um baio xucro para sua própria montaria, até parecia malvadeza pois o baio não deixava nem o vento tocar sua crina sem resmungar pelos campos da serra, n’uma tarde fria de renguear cusco, a neblina quase não deixava enxergar um palmo à frente do nariz, a neve de vez em quando branqueava os campos de cima da serra, a gauchada como para disfarçar o frio, tomava chimarrão, lonqueava uma costela gorda que ainda sobrara do almoço na fazenda,contavam causos, estes sobre chinas, namoro de prima ou guerra do Paraguai, coisas que os tropeiros adoram, um gaiteiro louco de faceiro tirava umas notas na sanfona furada por um balaço no último buchincho, o violeiro corria os dedos em volta do braço do violão tentando de algum modo arremedear com o gaiteiro uma coisa que parecesse uma música qualquer, no canto, dois cuscos velhos, um gato castrado, gordo de tanto dormir espiava os ratos andando por riba dos paus do telhado, uma cena bonita, era sinhá Malta de namorico com o compadre Zé Porc, de tão passados no tempo nem um dos dois talvez tivesse qualquer objetivo a mais, não fora, um apenas aquecer ao outro, mas namoro é namoro e de vez em quando Zé Porco arriscava uma beijoca na boca frouxa da sinhá Malta, onde apenas jaziam os buracos dos dentes, diziam que ainda era mulher não mexida, que até podia valer um dedo de prosa para arriscar provar um pouco daquele quentinho que como a mata, era ainda virgem, mas como diz o negro Balduíno, quem quiser arriscar leva uma talhadeira, um punção ou coisa que valha porque vai ser difícil varar aquilo, mas como ia dizendo lá pelas tantas da noite quando já todos iam se acomodar e puxar seus pelegos pra espantar o gelume da noite, eis que aparece o baio com o piazito ajeitando suas crinas e acariciando seu pescoço (porque gaúcho e cavalo parece que já nascem meio coligados) parecia um matungo, o potro que a pouco fora domado, o negrinho não tinha mais que uma dúzia de anos no couro, era difícil saber a data de aparição do vivente no mundo, uma vez que sua mãe se foi pras bandas do Uruguai com o famoso Zeca Mole, um baita balaqueiro, contador de causos, metido a gaiteiro que na verdade não saía do nheco-nheco, vari fum, mas era boa pinta o desgranhudo, destes cabeludos de cólinha e anel nas orelhas, unha pintada, um baita boióla que cortava pelos dois lados, a negrinha mãe do moleque se enfeitiçou pela conversa melosa, pelos olhos de peixe morto daquele tiatino vaga e lá se foi deixando o rebento ainda sem nome e por azar seu sem a marca do batismo pra que o Pai do Céu possa reconhecer o vivente em qualquer canto deste mundaréu, mas como gaúcho é sangue bom quase por natureza, porque o que não for bom ou é criado por estrangeiro ou é vivente achado no mundo, nunca criado pelos pais ou pelo menos, nos galpões da vida, pois uma coisa nós temos de bom, é respeito pelo Patrão velho e a Mãe do céu, como primeira prenda do céu, adoramos a Santíssima Trindade, rezamos pra São Francisco, respeitamos mulher casada e as coisas do alheio, alguns não levam desaforo pra casa, mas os mais novos já estão saindo com outras idéias e até negociam isto,um dia fizemos uma festança no galpão da fazenda, o patrão deu um novilho de pós ano, aproveitamos a passagem do Frei Zerinho por estas bandas e sapecamos água benta e unção de óleo na testa do gurisito, fazendo o batizado como manda a lei de Nosso Senhor Jesus Cristo, recebeu o nome Ambrózio em homenagem ao Santo do dia, a partir dali calculamos a idade de 12 ou 13 anos coisa assim, mais ou menos, já dava pra ele tocar a vida com um certo norteio de tempo e uma referência de saber quem é ele nos caminhos por onde pisasse, o moleque foi crescendo ali com os peões da estância.
Um dia n’uma certa festança, aquelas de marcação, sinalização e castração de touros e matungos, não é que o Ambrósio resolve a noite durante as danças se arriscar n’uma contradança com a filha do posteiro, olho no olho, o Ambrósio já estava lá com seus 19 ou 20 anos nunca se sabe ao certo, se arrumava bem o guri, cabelo lambido, chapéu da aba rebatid, bota de couro, nova, mais metido que lambari de sanga, mas um bom guri, cantava umas melodias dessas modernas que quase ninguém entende, nem ritmo nem linguajar, aí a mocinha que ainda não conhecia coisa melhor, foi se engraçando aos poucos com o guri e na dança, sabe como é, começa de longe, mas vai encostando, vai encostando e a coisa vai aquecendo, lá pelas tantas já está cara com cara, falando no ouvindo, acariciando a orelhinha e coisa e tal e tudo virando n’uma coisa só, de riba abaixo não cabem dois dedos de lateral, pode tocar vanerão, chote marcado, tango ou bolero pros dançarinos não interessa o ritmo, ninguém quer perder o quentinho, é um aperta daqui o outro aperta de lá, mas eis que o posteiro que sonhou sempre casar a filha com o filho do patrão (puxa saco que só ele, poderia até dar a menina em troca de um saco de batata, o infeliz) vê aquilo e fica desatinado, se contém até terminar a dança, mas o Ambrósio andou rápido e combinou ficar com ela no meio do salão, esperando a próxima marca, pra aumentar o desespero do homem, não deu outra, apartou o casal, pra surpresa de todos o Ambrósio aceitou em paz, mas saiu do galpão de cabeça baixa como que a tecer algum plano pro futuro.
Passados algumas horas, volta o guri como sempre, em paz, ficou por ali chuleando de canto de olho, já era madrugada varada, o gaiteiro cansado não saia d’um certo vari- vari fum e vari vari fum esticava a sanfona enquanto o violão chorava um dim dom dim dom, dizem os entendidos que aquilo não era música, mas após uns tragos de canha a mais quem vai convencer os bailantes disto? Ambrósio chuliou pelos cantos e lá estava a prendinha recostada n’um pau de sebo, daqueles usados nos festejos de São João, que fica cravado no meio do salão, espichou um pouco mais o olho e viu o posteiro meio enrolado n’uns pelegos, já duro de tanta canha, babando pelo canto da boca, com um palheiro entreverado por entre os dedos, aí o guri não perdeu tempo, apressou o passo e foi lá convidar a prenda pra contra dança e não é que a guriazinha aceitou de prima, foi mais fácil que tirar rapadura da mão de criança, começou uma dancita meio despretenciosa o que menos queria era dançar, prosa vai, prosa vem e o Ambrósio foi se aprochegando pra porta de saída do galpão, a prendinha era assim uma morena destas cor de cuia, cabelo longo pra trançar no verão e cobrir os ombros no inverno, desses em que o gaúcho fica ali brincando de passar o tempo enquanto chuleia o cangótinho, era uma morena bem fornida de pernócas entroncadas, cintura bem desenhada e uns peitinhos mais ou menos do tamanho de uma laranja de amostra, olhos pretos como a aza da graúna, certamente o guri não tinha feito uma má escolha, moça virgem, criada na fazenda, a noção que tinha de sexo era a de ver os garanhões cobrindo égua ou o touro fazendo bezerrinhos com as vacas, lá de vez em quando um cachorro e uma cadela coisas naturais da estância, sabe lá ela o que é fazer amor ou revirá zóinho, mas sorte do Ambrósio que também era chucro nestas coisas, certamente desenvolvido na própria estância com alguma china gorda e malcheirosa lá dos cafundós da tia Anastácia que sempre conseguia umas gurias baratas que defendiam os peões abandonados e os mais arteiros fazendo amor por uns pilas qualquer ou um bom naco de charque, finalmente naquele fundão quem ia atrever-se a pegar uma gonorréia ou coisa parecida, posteiros e patrões iam na cidade corrê china de primeira, a gente só ouvia falar dos tais de cabarés com moças pintadas e o tal visque uma praga de bebida que nem se compara com uma boa canha do alambique do seu Tonhão.
O guri surpreendeu a todos, enquanto uns dançavam meio bêbados e outros dormiam recostados pelos cantos, o velho posteiro era um babado só, o coitado talvez só conseguisse sair dali arrastado pelos pés e o Ambrósio que de bobo só teve o nascer, arrastou a guriazinha porta a fora, o baio já estava encilhado aguardando na estrebaria, pronto pra fuga, foi chegar, montar e fazer garupa, mostrar ao mundo a força do amor e as decisões tomadas sem violência, frutos da inteligência da nova geração, pois Ambrósio era rapaz de boa paz, arma só usava pra caçadas, correndo ladrão ou coisa de muito risco e no mais contava com sua capacidade de pensar rápido e um bom desdobramento de conversa, já estava na fronteira, pois tudo ocorre em Uruguaiana onde um passo é no Uruguai e outro é no Brasil, se bandearam pro outro lado, por lá Ambrosio fez família e dizem que até voltou pra visitar o sogro n’uma destas caminhonetas modernas que não precisa de manivela pra virar o arranque a danada pega só em virar uma chavinha, o posteiro que já era abandonado pela china malvada, é claro que ficou enraivecido com o roubo da sua prendinha, não era isso que ele imaginava como futuro mas o guri mostrou que o amor vence barreiras que parecem intransponíveis quando acreditamos na sua verdadeira força, hoje até sinhá Malta e o velho Zeca Porco estão lá velhinhos morando na fazendola do guacho achado na estância, um belo dia a gente conta se a mãe do guri apareceu lá pelas bandas do Uruguai com aquele balaqueiro a tira colo ou já encontrou coisa que preste, o velho baio foi largado ao pasto como prêmio pela bela viajem que fez, hoje é relíquia do Ambrósio, que é claro já ganhou do Pai do céu um belo gurizinho que logo logo vai campear certamente em pêlo no lombo do baio, dizem que filho de tigre sai pintado então o guri poderá ser mais um ginete domador e vamos torcer para que seja mais um estancieiro que desta vez roube uma guriazita do Uruguai para se aquerenciar neste imenso Rio Grande do Sul, muito embora uma coisa seja certa, todos somos irmãos isto é só uma prova de que o amor vence fronteiras e para ser feliz temos que primeiro formar uma boa parceria, confiar em Deus e ir na busca daquilo que acreditamos ser o melhor para a nossa vida e o sogro?
Deve estar lá pelas margens do rio Uruguai certamente entalado em alguma garrafa de canh, cumprindo seu destino de índio livre que sempre trabalhou para os outros sem se aquerenciar em lugar algum, vida de gaudério, sem terra, mas feliz e que mal tem fugir pro Uruguai finalmente é pra lá que se leva prenda roubada.

Este conto participou do Festival Negrinho do Pastoreio, realizado em Porto Alegre, Maio/05, conseguimos classificar em 13º, mas não desistimos a peleia continua.

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