APENAS UMA SEXTA FEIRA
Era sexta feira, mais um final de semana destes em que se podem fazer tudo e de tudo desde que não se esteja sob a mira de um treinador, sabe como é, eles projetam seu sucesso através dos seus comandados, eu, um simples mortal, um cara de boa índole, um boníssimo Samaritano, colégio de Padres e coisa e tal, mas como todo mortal sujeito e exposto às coisas de mais (ou menos?) uma nova sexta feira, uma noite bonita, um belo luar, mas assim, um pouco perturbada por escassas nuvens, ás vezes a luz da lua, por vezes a sombra, uma cândida noite e eu ali em casa sozinho, olhando a noite pela janela do sexto andar, concentrado na vida, no trabalho e no que poderia fazer para viver mais uma sexta feira.
Tão linda, a noite, uma noite quente cheia de luzes, que pensei: oh, as noites de sexta feira estão se esvaindo lentamente, a cada semana tenho menos noites de sexta feira para usufruir, logo eu, que adoro noites de sexta feira, as verdadeiras noites de pãndega, da esbórnia, da estroinice, da sacanagem, das despedidas de solteiro e porque não também de muitos casados, pois geralmente pra eles é na sexta que o casamento se complica, por todas essas casualidades que a vida nos oferece a cada momento, enfim, fiquei pensando o que fazer para manter-me calmo e concentrado?Concentração, para um jovem de 28 anos, é um grande sacrifício, numa sexta feira, uma tentação, um massacre, testosterona a mil, expectativa de vida voando e eu... aqui.
Mas não podia chafurdar no lodo prazeroso da dissipação naquela noite, porque no dia seguinte, de manhã bem cedo, nove horas, teria jogo do nosso time.
Mais do que um simples jogo: Uma decisão, portanto, precisava preservar-me, repouso, muito repouso pedira meu técnico, concentração, nada de festa, precisamos estar na ponta dos cascos, o time deles é fera, sabe como é, todo mundo se poupando nesta noite. Mas por que não dar uma voltinha inocente por aí? Só uma bandinha, sem pretensão, coisa de menino puro, assim tipo uma despedida antes do jogo final, que mal tem, a carne pode ser fraca, mas a mente é muito superior ela sabe muito bem o que quer e o que é melhor para cada momento, ainda mais sou homem, e homem sabe dominar pensamentos, não vira a esquina por instinto.
Fui. Saí andando, tranqüilão, e peguei sei lá, uma rua destas meio penumbras, não podia aparecer muito mesmo, aquela rua escurinha era a ideal para quem precisa passar no anonimato da noite e desci por aquela rua sem destino. Lá no fim, n’uma esquina, vi uma placa amarela de néon, onde brilhava o nome de uma cerveja. Quando vi o néon, por algum motivo, senti que deveria entrar naquele bar, algo dizia vai, vai só um pouquinho, uma vózinha insistente ia atordoando minha cabeça, mas a mente é forte, é claro que vou resistir, pois o treinador não quer, caminhava e pensava: Entro ou não entro? Devo mesmo entrar? Será que entro mesmo? Ao chegar beeem pertinho da porta do bar, parei. Fiquei olhando e... pensando, pensando, quase sem perceber fui deixando o corpo cair sobre a perna direita de modo que quase sem perceber precisei adiantar a esquerda para equilibrar, consegui equilibrar-me e parar para pensar um pouco mais., não, não, isso deve ser armadilha do time deles, sabe como é, querem subornar o craque com ofertas malediciosas, coisas do mal que nos levam a falir na vida, pensei, pensei e pensei mais um pouquinho e disse, sai par lá capeta o treinador não quer, apesar de ser sexta feira e sabe como é, sexta é sexta, mas... o treinador não quer., bem, mas é sexta.
Decidi ir embora, ufa, em primeiro lugar a responsabilidade, homem tem que ser homem é nas decisões, o grande jogo, a ordem do treinador, o dever me chama pra casa, então pernas que se movam pra outro lado, direita volver.
Já ia saindo, juro, juro que ia, completo, com coração pernas e tudo, mas a danada da porta se abriu, um casal saiu agarradinho, assim coladinhos, pareciam felizes, alegres, e de dentro da porta veio voando uma risada de mulher, era uma risada clara, de metal, muito autêntica, de quem realmente estava se divertindo muito, foi atrás desta risada que não resisti, entrei no bar, uma entradinha só que mal tem e o treinador nem tá vendo e ainda mais é sexta feira, só uma entradinha, então ta, disse o corpo pra mente.
O ambiente era meio escuro, um ar meio sinistro, coisa assim meio esotérica, havia muita gente no lugar, mas não estava insuportavelmente lotado. Pedi uma cervejinha, finalmente uma inocente cervejinha não pode fazer mal. O garçom trouxe. Ah, beem geladinha!Daquelas de estalar a língua, por estar assim tão gelada, é claro pedi outra e no meio daquela segunda cervejinha, identifiquei-a, ali, logo ali, ao alcance, quem? Quem? A dona da risada, pois ela riu de novo, até gargalhou, e sua gargalhada fez evoluções acima da fumaça dos cigarros, ela clareou o ambiente, encheu de musicalidade o bar, sabe aquelas risadas onde se pode até contar os dentinhos e analisar a epiglote da dona? Era assim que ela sorria, viajei, sonhei, delirei, mas e o jogo? Preciso estar concentrado nele, sai pra lá coisa do capeta, o treinador não quer estas coisas que você esta oferecendo.
Olhei para ela, olhei bem para ela, admirei, analisei, medi, provei e continuei olhando, não conseguia não olhar para ela, com toda aquela majestade, dona daquela marcante risada, como pensar nos conselhos do treinador? Aí meu amigo (a) aconteceu algo assim que não acontece para os mortais todo o dia: Ela chegou mais pertinho, beem pertinho e fincou em mim um olhar esverdeado de um jeito que uma mulher daquelas, com aqueles olhos, aquele rosto, aquele corpo e aquela risada, não olha, e aí aconteceu outra coisa que não acontece assim todo o dia: eu soube de imediato exatamente o que deveria dizer a ela, sabia qual era a frase, qual era a entonação de voz, a forma como deveria dizê-la, o jeito, tudo, tudo. E... joguei os ombros para trás e dei uma leve puxada pra cima no canto direito do lábio assim n’um meio sorriso djóia mesmo, e me fui, me atirei, gingando, ziguezagueando entre as mesas, contornando os casais, mas parecia tããoo pertinho? sei lá acho que confundi um pouco a distância, duas cervejinhas, aquela coisa fruto da emoção, e continuei contornando os casais, com licença aqui, com licença ali, olhando sempre fixamente para ela e ela para mim e nossos olhares jamais se desviaram, era como marcação de zagueiro em centro avante esperto ou n’um ponteiro serelepe, até que eu chegasse beeem pertinho, mas beeem perto, a ponto de lhe sentir o aroma da água de colônia, o cheirinho do seu batom, e batom tem cheiro? Ah o dela tinha, a ponto de lhe sentir o hálito de leite condensado, e o cheiro de manhã de seus cabelos e fui me inclinando, me inclinando na direção dela até para chegar mais rápido, meu corpo fez de tudo para auxiliar ao meu lábio inferior tocar de leve no lóbulo macio da orelha direita dela e eu disse o que tinha de dizer, beeem baixinho, bem caprichado, sussurrado, ronronado, quente, umas únicas frases acertadas, fatais, sem recurso pra ela, uma frase com a precisão dos lançamentos do Ademir da Guia ou Rivelino sei lá, um desses fatais que não erravam lançamentos e esta frase como que ondulou pelo labirinto, passou pelo estribo, driblou o martelo, bigorna penetrou fundo no ouvido dela, foi subindo, subindo até o cérebro, ela se infiltrou, insinuante, gostosamente marcante, foi segura, foi no ângulo superior do seu coração e ela cadente, sorriu pra mim, um sorriso largo, maroto, despreocupado, com jeito de vem cá meu bem, quero te amar, te aproveitar, te fazer um craque em tudo, mas tudo mesmo.
Vibrei, goooool do Brasil, um golaço, coisa de craque, friamente calculado, uma penetração incrível, um drible mágico, um chute desconcertante, é claro, ela quedou, não poderia ter resistência diante da perfeição do meu arremeço e o jogo continuou, mais uma cervejinha falou o garçom? ÃH, ãh, ãh falei sem perceber que algumas coisas que mais pareciam bolachas iam amontoando-se sobre minha mesa, mas tudo é festa, fiz meu gol de placa, muitas horas depois, precisamente 45 minutos antes do nosso grande jogo, estava eu voltando pra casa, meio desbragalado, meio tonto, meio zonzo, mas feliz, ria sozinho, báh, báh esqueci a concentração, mas não é nada, comigo é na catega, gingo pra cá, gingo pra lá engano a zaga e táhahha mais um golaço, resultado, vestiário tumultuado, preleção compriiiida, daquelas que parece que a fala do treinador sai lá do fundo do túnel, dificuldade de arrumar o uniforme, meias quase arreadas, amarrar cadarços? Que dificuldade, missão que quase abortei, mas craque sempre tem apoio de alguém que aposta nele, -calado, hoje em magrão? Éh, concentração total, guardar energias, meu caro.
Enfim como tudo tem a sua hora, chegou a fatídico momento do jogo, o apito do juiz parecia loooonge, quase inaudível, mas no meu ouvido não sei por que soava um som estridente, arrasante, feria os tímpanos, estribo....como não poderia deixar de ser, fui o pior em campo, me arrastei, mas me arrastei feliz, perdemos é claro, fui condecorado como o herói da derrota, culparam-me por não acertar os lançamentos, errar os passes, mas e aquele lançamento lá no bar? Pô, aquilo não vale, um lance de mestre? Culpado, culpado, ecoava em todo o meu pequeno ser, mas tinha eu o consolo de uma frase bem encaixada, de um olhar verde colado ao meu, de um sussurro bem sussurrado, coisa de craque, de uma risada ecoante como canto de sereia, hoje perdemos, mas eu posso dizer que conheço o verdadeiro canto da sereia, tive coragem, fui atrás e adivinha o que vi? Belos mares, uma pele delicadamente alva, um sorriso que não tem superlativo absoluto sintético que caiba, que possa sintetizar, coisa de poeta e poetas tem valores sublimes para estes momentos, uma noite, uma orelha ah, ah que orelha, que cabelos macios, colados aos meus, ali juntinhos até as primeiras luzes da manhã e o principal, de uma noite de sexta feira, como não aproveitar se a cada ano elas estão mais escassas na minha vida, lamento pela derrota, pela falta de ginga dos meus colegas, mas eu, eu tenho a certeza de que fiz uma boa concentração, cuidei da alma e do coração e ainda por cima pô, é sexta feira e dizem que nelas habitam boi tatá, lobizomem, bruxa feia e outras coisas, sei lá, talvez encontre na próxima sexta se não tiver que concentrar.
Por: WB Castanheira.
Este conto aguarda por melhor sorte, já participou de vários concursos, mas ainda não conseguiu fazer a felicidade do seu criador
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