UM SHOW NA MINHA VIDA
Eu tinha as pernas cansadas, dobradas num v ao contrário, a calça jeans marcada com o que foi antes do barro que depois virou poeira que depois era uma camada fina e seca cobrindo o corpo e as roupas de todos nós. Ali, sentados naquele lugar imenso, que subia e descia ocre porque a grama já tinha sumido desde o primeiro dia do dantesco festival, onde o pessoal, caminhava, deitava, rolava, fazia quase tudo aquilo que a imaginação fosse capaz de criar ou repetir. Eu soltava distraído uns fiozinho da bainha da calça, Rose, uma doce amiga, uma eterna companheira, sempre ela, estava ali como sempre ou quase sempre, ela participa dos meus grandes e inesquecíveis momentos, as costas doíam e estavam juntas, coladas às de Rose, a gelada Rose, era nosso suor que escorria e empapava também a minha camiseta, ninguém sabia o que era de quem, naquela doce mistura. Duas criaturas sujas, molhadas, juntas de um monte de outros sujos que eram estes fãs dos Beatles, eu e Rose calados, colados, acabados, um pouco distantes e um pouco parte de, ouvidos zumbindo, cabeça chiando e o vento começando a soprar e os braços a arrepiar, momento que abraçamos eu nos meus, ela nos dela, quase ao mesmo tempo, isto era até onde a gente se permitia chegar ou pelo menos assim pensávamos.
O ar tinha cheiro de delírio, de fim de festa, mas de felicidade geral, de conquistas, misturado com empolgações e emoções, gente ia e vinha, numa confusão de movimentos e atos, outros sentaram para falar ou deitaram para não falar, mas no fim era todo mundo muito parecido, cada movimento que Rose fazia movimentava a mim também, ela reclamava de dor e girava os ombros, e eu sentia o tranco nas costas, era tempo demais pulando, dançando, e ainda antes dormindo numa barraca e ainda antes viajando vinte e quatro horas de ônibus.Só para ouvir e ver a música dos Beatles, para comprar camisetas dos Beatles, e pulseirinhas e fitinhas dos ambulantes, para ouvir eles dizerem,- Helo Brazil, I’m very happy to be here today, foi um frenesi geral, um delírio enlouquecedor.
Os Beatles destruíram, eles botaram pra quebrar, arrebentaram a boca do balão bicho, uns quatro ali da primeira fila foram esmagados e o Beatle disse lá uns stay calm, stay calm e a multidão aplaudia, pulava e comentava, putz, que gente fina esse carinha e gritava e se esticava para olhar e pulava e levantava poeira, até que uns mais espertos cobriram os narizes tipo bandidos do velho oeste com lenços que diziam Beatles e em baixo Latin American Tour e mais em baixo do what you want o nome do novo cd.
Digamos que era bem diferente de estar lá vendo com a Rose um daqueles filmes, comendo pipoca macia e jogando as duras nas cabeças das pessoas da frente, enquanto um carro explodia e a boca ficava aberta e tudo mais e uns anos depois gente que explodia por dentro de raiva de amor nos lugares e numas épocas com chapéus e piteiras e algum revólver elegante. A verdade é que eu podia lá, ter explodido vendo os Beatles em cima do palco, tirar um lá, um dó, um sol e ficar de frente pro baterista e depois se enlouquecendo de improviso montado, mas tudo o que eu via era um pontinho, porque ninguém é tão grande pra ser visto de tão longe.
Com a ponta do all-star, Rose começou a fazer círculos no chão.
-Bah, meu –foi dizendo- Muito lindo tudo isto, toda esta energia, essas pessoas vibrando pela mesma coisa, juntos, unidos, a massa vira um troço só, e a gente parece que se achou no mundo, chocante mesmo, que idéia bacana você teve, podes crer jamais esquecerei, você ganhou este round.
E daí ela riu um pouco envergonhada e virando o rosto para mim, e eu para ela, ficamos assim meio tortos, porque a Rose é destas que quando ri precisa dividir a risada e por isto tem a necessidade de olhar e de rir e de esperar que eu ria também. Acomodou-se de outra maneira, com as pernas cruzadas tipo índio, eu segui, então acho que ela me olhava esperando que eu dissesse, sim é isto mesmo, como se, para ela sentir realmente o que estava dizendo precisava antes da minha confirmação, mas, eu, não conseguia falar nada. Eu não tinha me achado, eu continuava perdido, embora admirasse Rose e os seus olhos fechados quando os Beatles fizeram baixar a poeira e aos poucos o pessoal acender os isqueiros, essa música que Rose me mostrou no quarto, na barraca, deitada na cama e absorvendo cada som com tanta paixão que fazia então aumentar a minha.
Ela então falou quase, quase ao meu ouvido.
-Eu menti que gostava do Beto. Eu escrevi uns troços e guardei no fundo do armário, amanhã eu mostro, acho que caiu bem é muito legal esta história de um dia após o outro, a gente descobre cada coisa, que até o coração duvida, mas são descobertas e o mundo tá aí pra gente viver.
Eu acho que... bem, tem uma hora em que a gente não se entende mais.
Rose cansou de esperar e abaixou o rosto, ficou um tempão assim com a cabeça entre as mãos, a blusa de malha fina permitia que por entre seus braços eu admirasse quase toda a beleza do seu peito e... os cabelos macios lhe caíam sobre o rosto sereno e cansado, sua pele dourada, linda, contrastava ao cair delicado daquela luz de um sol divino, estava colando após secar o suor, mas era tênue e delicada qual casca de um pêssego maduro, dela vinha um delicioso cheiro de rosa delicada, assim misturado com um afrodisíaco oriental milenar e eu a pensar, pensar que somos ótimos amigos por causa do Beto, mas e se Rose só estava testando meu sentimento? E se ainda não estiver no momento certo da minha decisão, ah, meus tenros 17 anos como confundem minha cabeça e amarram minhas opções. Num delicado movimento ela meteu a mão no bolso da calça, procurando alguma coisa, saiu de lá com uma palheta na mão.
-Olha isto, esta relíquia, eu guardei de surpresa pra ti. Naquela hora que a gente se perdeu, é dos Beatles cara, ela jogou, eu agarrei,
E peguei na mão, e recebi aquele negócio nos dedos com todo o cuidado do mundo, sabendo que minha surpresa deveria ser com a coisa em si, mas que na real era com o gesto.
Nossa totalmente sem jeito. -Rose, tu que é toda fã dos Beatles, pôster na parede, Mccartney no quadro e outro na porta do guarda roupa, uma desesperada pelos caras, Lenon por todo lado, não sei mais o quê, vai me dar a palheta que ganhou deles, não acredito, tu já pensou, isso é mais que relíquia.
-Relaxa meu, fica com ela, eu peguei foi pra ti, só pra ti ( um sorriso tão profundo, tão verdade que chegou a me queimar no estomago toda a mentira que eu guardava dentro de mim, como eu mesmo conseguia enganar-me).
E daí ela virou-se e encostou nas minhas costas,suas mãos escorregaram , e como por acaso encontraram as minhas ao lado seu corpo, agora quente e agradável, foi se ajeitando até que ficasse de novo toda apoiada no meu corpo, eu desenlacei as pernas, voltei pro v de cabeça pra baixo, a palheta ainda na mão.
Rose.
-Fala
-Tu não tá louca pra chegar em casa?
-é, meio que sim, meio que não, a barraca está tão boa, tão, tão quentinha.
Eu rodei a palheta nos dedos, até que de propósito ou não, ela caiu em silêncio no meio de todo aquele marrom, aquele pó que não acabava mais e que nos cobria todos. Ela ficou assim quase de pé, espetada, ali entre nós não havia mais espaço pra outra coisa a não ser apenas a palheta. A Rose se mexia e não via nada, e nada eu dizia também, até que eu passei o tênis por sobre a palheta, dando uns tapinhas por baixo das pernas dela, enterrando as memórias dos Beatles, ficamos ali, parados, colados, sabendo o que queríamos e pensando se deveríamos, era tão bom sermos amigos, tanto tempo juntos, tanta cumplicidade, e nos olhamos de um modo profundo e nos aproximamos de um jeito diferente e nos aquecemos como nunca havíamos nos aquecido e não sei como nos beijamos , mas num beijo tão longo que não parecia amor, parecia paixão ardente e os Beatles ficaram pra trás e o Beto ficou pra trás e até hoje não sabemos como tudo aconteceu se ficamos ou nos amamos, sabemos que dormimos um sono tão profundo e descomprometido que acordamos com os gritos do Beto de outra barraca, -Rose meu amor, vamos embora, já juntei a turma e desarmamos tudo, foi muito legal acordar e ter você assim tão pertinho.
Peguei meu violão, mantive comigo a palheta, juntei a mochila e voltei ao grupo para juntos encarar mais vinte e quatro horas de volta. Noutro dia lá estava Rose, na minha casa para recordar o show dos Beatles, e eu com a mesma palheta comecei Yesterday all my troubles seemed... ela recostou suas costas nas minhas, senti o perfume do seu cabelo macio e a suavidade da sua mão acariciando minha nuca, novamente Beatles, antes, durante e para garantir o após , assim meio sem jeito falei, -pega ali aquele presentinho.
-Pra mim??
-é claro, ela desembrulhou com mãos mágicas e leu em vós alta, - Yellow Submarine, não, não acredito, meu sonho de consumo, como adivinhou ? Tu é demais, ah, merece um carinho especial, é claro, é especial.
Fiz cara de quem não sabe, e fiquei esperando um beijo macio, muito mais imaginando do que esperando, mas...dei me ao luxo de esperar um beijo com sabor de quero mais, aos poucos e devagar bem devagarzinho senti suas mãos a percorrer meu corpo, numa delicada estrada de amor e assim ficamos ali, um pouco de carinho, um pouco de pouco de olhar, o tempo deu lugar ao amor, o amor deu lugar aos amantes, ouvindo Paul Mccartney e sonhando com aquele fantástico show, com as luzes, com o barro e a poeira, com a barraca e quem diria, a palheta, ainda hoje,passados tantos anos é a mesma com a qual dedilho nossas canções de amor, passou o tempo, ficaram os Beatles e ficou o amor e passaram os dias, os meses, os anos e ficaram os Beatles, os discos de vinil e hoje, continua nossa bela lembrança de tudo aquilo enquanto vemos nossos filhos, ali, escutando, imaginando e falando, -puxa, devia ser legal um show dos Beatles. Não sabem eles, que nasceram a partir de um encantado dia desses, que jamais voltará, mas como voltar se ainda está tão presente?
pOR; WBCastanheira
Conto classificado no concurso Petros/08 e no festival de contos p/escritores de Florianópolis/08.
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